sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Na beira da estrada: Fé e Homenagem



Por Rosiney de Oliveira Gomes

No Brasil, as estradas matam tanto quanto as armas. Nossas rodovias não fazem distinção entre ricos, pobres, famosos ou anônimos. Quase todos que precisam utilizar esse meio de transporte correm um grande risco, andam no fio da navalha o tempo todo. Seja num carro de passeio, de ônibus, na boléia de um caminhão, em cima de uma moto ou de uma simples bicicleta. Nem mesmo os pedestres ficam de fora dessas estatísticas. Melhor dizendo, os pedestres são as principais vítimas dessa violência sem freio. Nas estradas, o perigo é constante e real. Nunca se pode brincar ou desviar a atenção um minuto sequer. Segundo os órgãos de transporte do estado, a imprudência dos motoristas é um dos maiores causadores de acidentes fatais, seguido pela impunidade, má conservação das estradas e pelas brechas que existem nas nossas ultrapassadas leis de trânsito. Elas permitem que o infrator continue dirigindo mesmo depois de causar gravíssimas e fatais tragédias.

Bom, isso são velhos e graves problemas que devem ser abordados e resolvidos pelas autoridades competentes, com a participação da sociedade - a mais prejudicada, é claro. Também não é esse o principal assunto que abordarei nessa matéria. Aqui, vou contar para os leitores algumas histórias e curiosidades a respeito das vítimas, simbolizadas pelas milhares de cruzes fincadas às margens das estradas, rodovias, avenidas, ruas e vielas. Tenho certeza que muitos leitores que pegaram seu carro ou outro meio de transporte algum dia e foram passar um fim de semana ou suas férias em outro lugar, fora da cidade, já deram de cara com uma ou mais delas. Também não é preciso viajar para longe para testemunhar isso.

Quem acorda de manhã e sai para o mercado, padaria, feira ou mesmo para o trabalho todos os dias, pode encontrar uma cruz nas esquinas, nos canteiros ou nas calçadas, já que elas estão espalhadas por todos os cantos.

Em conversa com um funcionário da prefeitura e outro do DETRAN, fiquei sabendo que não há necessidade de autorização especial desses respectivos órgãos para os familiares homenagearem seus parentes que se tornam as vítimas constantes das estradas. Há um respeito natural, por parte dos órgãos, em relação à fé e à religiosidade das pessoas, desde que as cruzes não interfiram diretamente no andamento do trânsito ou dos transeuntes.

O povo brasileiro é muito religioso, sua fé e respeito pelos mortos é demonstrada de todas as formas. A morte, para muitas pessoas, é um assunto difícil de ser abordado. Todos nós iremos enfrentar esse caminho, mas na hora de falar abertamente sobre o assunto, ele se torna indigesto. Para contar essa história, procurei muita gente, que por um motivo ou outro passou por uma tragédia dessa natureza - um acidente, numa curva qualquer, dessas muitas estradas, espalhadas por nosso estado. Ninguém quis colaborar comigo. Ninguém se dispôs a reviver tudo outra vez - o drama vivenciado, afinal de contas, a dor é grande, as feridas demoram a cicatrizar e muitas nunca cicatrizam, como alguns chegaram a me confessar. Mesmo assim, consegui informações que foram importantes para a redação dessa matéria.

Dona Joana (nome fictício) me recebeu em sua casa. Descobri que seu marido foi uma vítima fatal de atropelamento, mas antes de falar de sua reação, vou contar como cheguei até ela: Estava eu, com minha câmera na mão, fazendo umas fotos para ilustrar meu trabalho no Km 12 da CE 020, quando se aproxima uma senhora de aproximadamente 40 anos e pergunta por que eu estava fotografando aquela cruz. Respondi que estava fazendo um trabalho sobre o assunto e precisaria das fotos. Aproveitei e perguntei se ela conhecia algum parente daquela vítima e, para minha sorte, ela disse sim. Disse-me que o homem que faleceu naquele local morava do outro lado da CE, praticamente em frente de onde estávamos. Segundo sua versão, o homem tinha saído de casa para cortar o cabelo. Preparava-se para ir ao enterro da sua esposa, que havia falecido no dia anterior. Agradeci a atenção e as informações e fui até a casa que ela indicou como sendo da filha do falecido. Para minha sorte e - com o faro de jornalista já - procurei checar a informação recebida com outra pessoa mais adiante, antes de chegar à casa de dona Joana. Para minha surpresa, descobrir que, na verdade, Joana é a viúva do morto e não a filha, como me disse a primeira informante –. Escapei de passar por um grande mico. Bom, vamos ao que é mais importante nisso tudo. Enquanto me dirigia ao local indicado, pensamentos mil me atormentavam. Estava preocupado, e não podia ser diferente, com a reação da viúva. Com muito cuidado, me aproximei da casa. Bati palmas, apareceu uma criança de mais ou menos oito anos na porta. Perguntei por dona Joana e o menino saiu disparado para dentro de casa gritando: “vozinha, tem um homem lá fora lhe chamando”. Ela apareceu em poucos segundos – não deu nem tempo para eu me acalmar, já que estava ansioso e preocupado. Recebeu-me muito alegre. Com um sorriso no rosto, pediu-me para sentar no sofá e sentou-se à minha frente, em uma cadeira. Eu estava nervoso, como já disse anteriormente, mas não podia deixar transparecer. Também devia aproveitar a oportunidade de estar com uma pessoa que podia me contar uma história verídica sobre um dos muitos atropelamentos fatais que acontecem por esse mundo afora, todos os dias. Tomei coragem e comecei me apresentando como estudante de jornalismo e explicando sobre o trabalho que estava fazendo. Depois, olhando firme para ela, disse: Dona Joana, fiquei sabendo que a senhora passou por uma tragédia em sua vida há algum tempo e gostaria de contar com sua ajuda para fazer o meu trabalho. Continuei, antes que ela pudesse falar, sei que sua dor é enorme, eu sinto muito, mas sei também que esse é um caminho que todos nós iremos traçar, mais cedo ou mais tarde. A senhora concorda comigo? Antes que ela respondesse, vi que o sorriso lindo e espontâneo com o qual ela havia me recebido fugiu completamente do seu rosto. Em seu lugar apareceram, em seus pequenos olhos, lágrimas, muitas lágrimas. Ela abaixou a cabeça, cobriu o rosto com as mãos e disse: O senhor me desculpe. Gostaria imensamente de ajudar-lhe, sei o quanto é importante seu trabalho, mas é que eu não consigo falar, ainda, desse assunto. Apesar de já fazer quase quatro anos que ele se foi, para mim parece que foi ontem. Suas palavras saíam trêmulas e engasgadas, a força parecia ter desaparecido do seu corpo naquele instante. O esforço para dizer alguma coisa era muito grande, assim como o sofrimento, visível. Vi que a vontade de colaborar comigo era sincera, mas suas forças perante aquele acontecimento trágico e doloroso eram muito menores do que sua intenção de me ajudar. Fiquei feliz de sentir sua sinceridade e, ao mesmo tempo, triste de ver o esforço que fez para colaborar, sem ter sucesso, já que um acontecimento dessa magnitude deixa feridas que são difíceis de ser curadas. Algumas, o tempo cicatriza. Outras, não. Depois de alguns instantes de silêncio sepulcral, tomei coragem mais uma vez e perguntei: é verdade que seu esposo estava atravessando a CE para ir cortar o cabelo no dia do acidente? Ela, compassadamente, disse: “ele nunca gostou desse negócio de velório, enterro, qualquer coisa fúnebre. Mas no dia que a nora dele morreu, ele fez questão de acompanhar tudo, inclusive, queria ir ao enterro. Saiu, sim, para cortar o cabelo naquele dia, antes do enterro. Foi também antes de conseguir atravessar a CE que o carro pegou ele...” – ela não conseguiu continuar, paramos por aqui.

3 comentários:

amalia disse...

emocionante, dá até vontade de chorar. Parabéns Ney

Anônimo disse...

Dá vontade de morrer de chorar, não?

LINHA MORTAL disse...

Revisado.