quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Diego Lage e Antônio Bomfim

DESCANSEM! EM PAZ?



Caucaia, 20 de agosto. A cidade, em pleno desenvolvimento na Região Metropolitana de Fortaleza, recebe a visita mais ilustre de sua história. Era a vinda do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e sua comitiva de ministros e parlamentares. Assim que desembarcou na Capital, juntou-se ao governador Cid Gomes (PSB) e seguiu para o Complexo Industrial e Portuário do Pecém – área destinada, em Caucaia e São Gonçalo do Amarante, a empreendimentos de maior porte – por volta de meio-dia. O anúncio, breve e emocionado, deixaria a cidade em polvorosa: as obras para a instalação de uma refinaria de petróleo começam no fim do próximo ano. São R$ 18 bilhões em investimentos para dobrar o Produto Interno Bruto (PIB) do Estado a curto prazo. Trata-se da melhor notícia, de todos os tempos, para a economia cearense. Menos para o pequeno e esquecido povo indígena Anacé.

A comitiva cruzou a rodovia CE-085, atravessou o distrito de Matões e chegou ao Complexo do Pecém. A área, praticamente desertificada, acolhe uma das maiores concentrações de impostos e tributos do Nordeste. Antes de ser criada, culminou com desapropriações e reassentamentos. Ninguém mais deveria morar no local, nem às margens de uma estrada carroçável, aberta à esquerda da CE-085. Mas lá está dona Maria Valdênia Silva Lima, 47. Ela residia na região central de Caucaia e não tinha mais condições de pagar aluguel. Em setembro do ano passado, seguiu “de mala e cuia”, para o Matões. Invadiu “o terreno que não tinha ninguém” e, hoje, reside com o marido numa tapera. Passa o dia sem nada fazer senão cozinhar, lavar roupa e dormir. O esposo, por sua vez, trabalha e passa o dia ausente.

O clima é tranqüilo. Não há vizinhos. Não passam carros. Sequer há passarinhos. “Moro onde não mora ninguém”, admite a comadre. Mas a simples austeridade pode estar perto do fim. "Veio um pessoal aqui e disse que eu tinha que sair imediatamente”, comenta. O pessoal era proveniente do Instituto do Desenvolvimento Agrário do Ceará (Idace) – órgão responsável pelas terras do Estado. “Disseram que vão fazer num sei o quê aqui”, completa. Dona Maria promete ficar “até quando der” e não tem idéia, porém, do próximo “cantinho para ir” em Caucaia. Em meio ao ostracismo, não tomou conhecimento sobre a visita presidencial.

O que o Idace quer fazer – e não informou à solitária moradora do Complexo do Pecém – é o levantamento topográfico para a futura refinaria. A tranqüilidade, em breve, dará lugar a um canteiro de obras e, futuramente, ao maior empreendimento do Ceará – capaz de produzir, diariamente, 300 mil barris de petróleo. Há ainda a perspectiva de gerar, entre diretos e indiretos, 90 mil empregos.

Mas a invasora não será a única afetada com a novidade. A estrada carroçável, meio quilômetro adiante, dá acesso ao cemitério Cambeba. Também não há movimento, carros ou vizinhos. Até enterros são raros. De acordo com a Prefeitura de Caucaia, foram somente 25 sepultamentos desde o início da atual gestão municipal, em 2005. Segundo o coordenador do Núcleo de Cemitérios, Mauro Duarte, “a procura é mínima", mesmo com a isenção de taxas. Ele aponta a distância em relação ao centro da cidade como uma das causas para a demanda abaixo da média.

O Cambeba pode estar na área que abrigará a refinaria. O Governo do Estado, no entanto, não se pronuncia sobre o caso, tampouco a Prefeitura de Caucaia. O Idace atesta que o cemitério está dentro do Complexo do Pecém na área que, por decreto, é de utilidade pública. Já a Agência do Desenvolvimento do Ceará (Adece) confirma que uma área de Caucaia, no CIPP, foi cedida, a título de estudos, para a Petrobras. Mas mantém o silêncio sobre o Cambeba e o levantamento topográfico do Idace.

O povo indígena Anacé habita áreas de Caucaia e São Gonçalo do Amarante – municípios que abrigam o Complexo do Pecém. Documentos de 1651 e 1712 comprovam a presença da etnia na área. E o Cambeba também teria surgido neste período. A Prefeitura de Caucaia admite que o cemitério fora criado pelos índios e, ainda hoje, é o único local para o sepultamento de anacés.

Francisco Ferreira, 28, o Júnior Anacé, é quem conta a história de seu povo. Segundo ele, o cacique Cambeba morreu sob a sombra de uma pitombeira e lá foi enterrado. Assim surgiu o cemitério, isolado e de difícil acesso. A árvore, ele destaca, ainda está lá.

Os anacés não toleram a possibilidade de acabar com o Cambeba. “Lá estão nossos ancestrais, nossa história”, reclama João Freitas, 38, o Joãozinho Coração de Índio. A avó, Têda Anacé, foi enterrada em 1960, no Cambeba, aos 104 anos. Mas ele não lembra, ao certo, onde está o túmulo. A identificação de jazigos é precária. Parte tem somente uma cruz, sem inscrições ou registros. “São os (índios anacés) mais antigos. Eram analfabetos”, completa Júnior.

Um menino, aos 10 anos, morreu em 1927 e “deixou saudade de seus paes (sic)”. Em 1935, uma mulher de 35 partiu e “deixou saudade de esposo e filhos”. Estes são os jazigos mais antigos cuja identificação de nomes e datas ainda é possível. Já um homem morreu em 1936, deixando “saudades de sua esposa e família”, mas a lápide desgastada impede a visualização de seu nome. Há ainda um homem cujos dados estão num galão de querosene.

São cerca de 1.265 índios anacés. “Nós não vamos abrir mão desse cemitério por nada desse mundo”, exclama Júnior Anacé. Segundo ele, a etnia não é contrária à refinaria, desde que o Cambeba seja preservado. Um documento, adianta Júnior, será elaborado e levado ao Ministério Público Federal (MPF). O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) também será acionado paralelamente. A demarcação das terras, junto à Fundação Nacional do Índio (Funai) também está sendo encaminhada.

O povo Tapeba, também de Caucaia, maior etnia indígena do Ceará, promete se unir aos anacés. De acordo com a Associação das Comunidades Tapebas, as informações sobre o caso também já chegaram às aldeias e o debate vem se intensificando nos últimos meses. Eles ressaltam que há elos de união e comunicação entre as duas etnias e que também se posicionam contrários à execução de projetos na região. O presidente da associação, Ricardo Weibe Costa, o Weibe Tapeba, confirma que o MPF, o Iphan e a Funai devem ser acionados. Ao todo, são cerca de 6,5 mil tapebas em 17 aldeias.

A união visa evitar que os anacés venham a perder seu patrimônio e histórico e, além disso, não mais tenham um cemitério próprio. E os tapebas já tiveram problemas com sepultamentos. Um deles foi no início da década de 1980, registrado pelo fotógrafo Marcos Guilherme, 58. O filho de um cacique teve seu enterro proibido no cemitério Central de Caucaia – cujas terras pertenciam à etnia. Segundo o fotógrafo, o sepultamento só foi possível depois que o então arcebispo de Fortaleza, dom Aloísio Lorscheider, intercedeu. Antes da cerimônia, lembra Marcos, dom Aloísio celebrou uma missa na entrada do cemitério.
Já a pajé Raimunda Teixeira, 64, lembra do enterro do cacique Vitor Teixeira de Matos, 80. O cortejo partiu do rio Ceará e foi barrado na porta do cemitério. A administração do local alegava não haver vagas. De acordo com o então coordenador da Pastoral Indigenista, José Cordeiro, o dono da funerária que vendeu o caixão se revoltou contra a cena e doou o lote de sua família ao povo tapeba. O caixão havia sido comprado pela Arquidiocese de Fortaleza.

Conforme Júnior, especulações sobre a refinaria já circulam “há muito tempo” entre os anacés. Há oito anos, ele lembra, a etnia fechou a CE-085 em forma de protesto contra a execução de projetos na região e diz que “vai haver uma guerra” caso haja a confirmação da refinaria na área do Cambeba.

No Cambeba, todos descansam em paz – como recomenda uma fita presa a uma cruz, caída sobre o chão e repleta de cupins. Mas não se sabe até quando.

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