quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Carolyne Barros e Tarsiano Holanda

5 mm*


Hoje carreguei uma farpa. Uma farpa no dedo, daquelas que incomodam, fincada embaixo da unha, numa dor constante que a princípio você acha que pode aguentar. Sabe uma daquelas coisas tão pequenas que ninguém ao seu redor consegue entender como pode machucar tanto? Aí você acaba entrando na onda, achando que o seu organismo vai empurrar a farpa pra fora, expurgar o mal como um mecanismo de defesa. E é ai que inflama, que cria pús, que o dedo gangrena... Eu não posso dizer que a dor era insuportável, mas se tornou difícil suportar de tão irritante que era. O incômodo me parecia um soco no estômago durante um ataque de asma. Foi como nadar em busca da superfície e não chegar nunca. Meu corpo entrou em pane. Meus pulmões não sabiam mais o que fazer com o oxigênio. Meus membros perderam a sua já frágil firmeza. Era como se o meu peito tivesse sido aberto, estraçalhado. Foi como tomar veneno. Dor angustiante, insustentável e desesperadora. Foi como perder o domínio dos sentidos e respirar os minutos lentamente, à espera do fim. O findar da dor e o findar de mim. Parecia a morte. Mas não era a morte, era algo pior. A minha agonia era prolongada, interminável. Eu sentia meus pulmões se enchendo de água, num afogamento ininterrupto. E essa porra não vai acabar não? Meu corpo não vai reagir e empurrar essa merda de farpa pra bem longe da minha vida? E por que 5 mm de moléstia me tiraria o fôlego da vida? Na minha existência humana nunca encontrei dor mais aguda. Dor de deixar impotente, de confundir o juízo. De se assemelhar à minha idéia de morte. Mas era pior. Era, além de sofrida, humilhante. Um metro e sessenta e dois de gente morrendo pela fragilidade, pelo embaraço e vergonha. Medidas exatas: 90 cm de busto, 74 cm de cintura e 93 cm de quadril. Quem entenderia os remelexos das tripas, o corpo doído e a respiração ofegante? Entendi, a partir dali, que morrer não é dor, não são tubos ou aparelhos enfiados no corpo. Morrer é falta, ausência, penar. Porque alguma coisa vai ficar e você vai ter que ir. Ou algo vai e você fica. Separados por dor e lágrimas. A farpa não saía e eu não conseguia agüentar. Eu queria tirá-la de mim antes de me esgotar. Cinco milímetros para o final da vida. A farpa no meu dedo, padecendo minha vida. De mim só restava o desespero. Doença crônica, de dor aguda. Câncer que me absorve, mutila meu órgão. Cinco milímetros de tumor no meu corpo. Farpa aguda, indicador de dor. Dor que me deu dó de mim.


Lentamente, em movimentos imperceptíveis, tornei-me inconsciente. A farpa-tumor me arrancou o peito esquerdo e me levou a vida. Não aquela que respira, coagula e drena. A vida biológica existe após a cirurgia, os medicamentos e os corredores frios dos hospitais que visitei. A maldição me levou o direito à alegria e o gozar das belezas. O corpo estranho saiu e deixou a vida. A vida morta, corrompida e mutilada. Vida e morte presas num tecido podre.


*Baseado na história de Dona Rita e nas emoções do Quebra Salto.

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