quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Élida Pires e Patrícia Pires

ABORTO: CASO DE VIDA



Segundo a doutrina espírita kardercista, seguidora dos preceitos do livro dos espíritas, a Bíblia dos espíritas, decodificado por Allan Kardec, percussor da doutrina no mundo, o aborto é crime, pois transgride a lei de Deus. E se configura como delito independente do estágio em que ocorrer o aborto, porque desde a concepção, o espírito designado para habitar certo corpo já está ligado por um laço fluídico, e que, cada vez mais, vai se estreitando até o instante em que a criança vê a luz. O doutrinador do Centro Espírita Solar de Jesus, Orion Angelim Marrocos, comunga da opinião expressa por Allan Kardec, pois diz ser o aborto um crime ‘monstruoso’. “Trata-se do único mal que, quando cometido, mesmo depois de muitas reencarnações, você não consegue se purificar, além disso, uma mãe, ou quem quer que seja, tirar a vida de uma criança antes do seu nascimento, está impedindo que aquela alma cumpra a missão para a qual foi destinada aqui na Terra”, complementa Orion Angelim.

O doutrinador explica que quando a mulher conclui o ato de abortar e posteriormente não consegue mais engravidar, é porque ela já começa a pagar parte do mal que fez à criança. “O que fazemos de bem, receberemos o bem, mas o que fizermos de mal teremos retorno da mesma forma”, declara o doutrinador.

Quando se trata de analisar o que a Bíblia transcreve quanto ao aborto, a polêmica movimenta segmentos religiosos. Professores de religião defendem um aspecto, o bispo Edir Macedo, da Igreja Universal do Reino de Deus, por exemplo, defende outro, e assim por diante. Com isso, o que temos é uma enorme contradição.

Um dos fundadores do Centro de Pesquisas e Informações Religiosas voltadas para a área apologética – CACP, graduado em história e professor de religiões, professor João Flávio Martinez, inferiu através de seus estudos, com base na Bíblia, que o próprio Deus se relaciona com pessoas ainda não nascidas. Para comprovar o que descreve, cita o Salmo 139.16. O salmista diz, com referência a Deus: "Os teus olhos me viram a substância ainda informe". O autor se utiliza da palavra golem, traduzida como "substância", para descrever-se a si mesmo enquanto ainda no ventre materno. Ele se utiliza desse termo para se referir ao cuidado pessoal de Deus por ele mesmo durante a primeira parte de seu estado embrionário, ou seja, até o estado antes do feto estar fisicamente "formado" numa miniatura de ser humano. “Deus diz que Ele se importa com a criança e a está moldando” (Salmo 139.13-16), complementa Flávio Martinez.

O professor de religiões cita outros textos do livro sagrado que também indicam que Deus se relaciona com o feto como pessoa, como em Jó 31.15 que diz: "Aquele que me formou no ventre materno, não os fez também a eles? Ou não é o mesmo que nos formou na madre?".

João Flávio articula que esses versículos e outros (Jeremias 1.5; Gálatas 1.15, 16; Isaías 49.1,5) demonstram que Deus enxerga os que ainda não nasceram e se encontram no ventre materno como pessoas, não havendo outra conclusão possível. Assim, o professor discrimina completamente a opinião do bispo Edir Macedo, que tem gerado muitas polêmicas com a defesa da legalização do aborto.

Para o bispo Macedo, conforme entrevista cedida a Folha de São Paulo, o fato de ser favorável à descriminalização do aborto ocorre por muitas razões, entre elas, o número alto de mulheres mortas por causa de abortos mal realizados ou as situações precárias as quais muitas crianças estão submetidas. Explica ainda que a Bíblia prega que se alguém gerar cem filhos e viver muitos anos, até avançada idade, e se a sua alma não se fartar do bem, e além disso não tiver sepultura, digo que um aborto é mais feliz do que ele (Eclesiastes 6.3). “Não acredito que algo, ainda informe, seja uma vida”, conclui o bispo.

Já de acordo com a ciência moderna, existe vida a partir do momento em que o óvulo é fecundado. Assim, um novo ser vivo começa a se formar com um patrimônio genético já definido, ou seja, todos os aspectos biológicos, psicológicos e até um temperamento formado, inclusive cor dos cabelos. Desde a fecundação começa a aventura da vida humana com as imensas potencialidades que caracterizam a pessoa, por isso o indivíduo que cresce no ventre da mãe deve ser respeitado e tratado como uma pessoa desde a sua concepção, e por isso, desde esse momento, o novo ser que irá nascer deve ser reconhecido com seus direitos como qualquer ser humano, o direito a vida.

No Brasil, o aborto é legalizado apenas em dois casos. Quando a gestação resulta de estupro ou quando não há outro meio de salvar a vida da mulher, neste caso a mãe. As duas circunstâncias permitidas estão no artigo 128 do Código Penal, em vigor desde a década de 1940. Em todas as outras situações, estão previstas penas de clausura tanto para a mulher como para quem realiza o procedimento.

Assim, as penas podem ser: detenção de 1 a 3 anos, para a mulher que pratica o aborto em si mesma ou consente que outra pessoa o faça; reclusão de 3 a 10 anos, para a pessoa que faz o aborto em uma mulher, sem seu consentimento; reclusão de até 10 anos, para a pessoa que faz o aborto com o consentimento da gestante menor de 14 anos, ou de pessoas com transtornos mentais, ou ainda se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência. As penas podem ser aumentadas em um terço se a gestante sofrer lesão corporal de natureza grave, e são duplicadas se ela morrer por causa da lesão, se constituindo um crime de homicídio.

Segundo o Ministério da Saúde, estima-se que, no Brasil, ocorram cerca de um milhão de abortos ilegais por ano. Assim, as condições precárias em que esses procedimentos são realizados fazem com que a prática seja a quarta causa de morte materna no país. Infelizmente, a legislação punitiva e a falta de serviços de saúde adequados à realidade brasileira obrigam as mulheres que querem interromper uma gestação indesejada a atravessarem a fronteira da legalidade.

É importante ressaltar que, no caso da mulher estar sofrendo risco de vida por causa da gestação, o médico poderá solicitar uma junta médica para atestar a necessidade do aborto. Nesse tipo de procedimento, o médico não necessita do consentimento da gestante nem do representante legal, para os casos de incapacidade do paciente.

Por fim, a partir do que foi exposto aqui, vemos com mais clareza a razão pela qual a discussão acerca do aborto é tão complicada. Afinal, as opiniões divergem bastante, além disso, por se tratar de uma vida humana, a questão não tem como ser simples de solucionar. Não se resume apenas a uma mãe ter ou não seu filho, pois atravessa os limites dos direitos humanos, indo por cima de qualquer lei, até o fato de simplesmente estar impedindo uma alma inocente e indefesa de cumprir sua missão na Terra, assim como afirma o espiritismo.

Nenhum comentário: